António Pedro Pita

Imaginemos: a pintura é uma cena. Em que ponto do devir visível estes movimentos foram captados e fixados? 

Pelo menos provisoriamente, no rasto de Klee e do seu credo procuremos na formulação paradigmática (a pintura não mostra o visível, torna visível) uma vida de acesso a esta pintura afirmativa.

Klee instala-se onde o figurativo perde consciência para a chamada abstracção. Mas o quadro não se tornou um espaço de não reconhecimento. Trata-se de tornar visível não exactamente o que esta oculto (e a pintura desocultaria) ou o que não existe (e a pintura traria à existência plástica) mas o que, no plano existente, não é todavia da ordem do visível – as forças, os movimentos, o tempo.

O trabalho do pintor não é representar mas compor, a solução plástica é chamada a mostrar a intensidade das forças, a vertigem ou a lentidão dos movimentos, a densidade do tempo. Ou: a força tornando-se superfície, o movimento tornando-se figura, o tempo tornando-se espaço ou cena.

A prevenção de Artaud ressoa: “ o teatro é o único sítio do mundo onde o gesto, uma vez feito, não pode ser repetido”. Próximo do teatro, ou talvez melhor: da dramatização, por um pacto com a singularidade do acontecimento, de que o gesto é o modelo, a pintura, o trabalho do pintor consistem na fixação do ponto exacto em que o gesto e o acontecimento condensam a intensidade da força, a velocidade do movimento, a densidade do tempo.

Mas a pintura não fixa em modo de repetição infinita, como se fosse um contra-teatro. A pintura concentra, é uma essência, como se diz dos perfumes ou dos venenos. E precisa de um olhar sensível para desdobrar a sua intíma capacidade de afecção.

Ora, a singularidade da pintura de Elizabeth Leite é que coloca uma primeira aparência de encenação ao serviço de uma complexa figuração de forças e de movimentos. Quero dizer: onde o olhar mais impaciente encontra um espaço interior familiar em graus diferentes de intimidade, o que nesse plano de fruição não é errado, outros olhares verão, nessa mesma cena, e no excesso dos corpos e no grito das cores e na energia do próprio gesto da pintora e na expressividade dos objectos um mundo em estado de reconfiguração permanente, ora apaziguamento e serenidade, ora tenção, ora limiar tranquilo de violência e de crimes.

Elizabeth Leite não pinta o mesmo momento desse devir (mundo, visível). Pinta os tempos desse devir e “a secreta loucura, os saltos de imaginação e de humor, o medo da morte, as coisas inexprimíveis“ (António Lobo Antunes) que estão imanentes, mas disfarçadas, na aparente normalidade das existências e nas situações que parecem não ter “mistério”.

É por soluções estritamente plásticas que Elizabeth Leite nos dá, ao mesmo tempo, a imanência, o disfarce e complexa tensão que os liga. O modo como trabalha a delimitação das figuras e dos objectos, ora claramente recortados ora prolongando-se enigmaticamente uns nos outros, como se o mundo tivesse perdido consciência e as coisas do mundo individualidade, ou modo como trabalha a (ir)realidade das cores, extraindo do limiar da inverosimilhança consequências pictórico-dramáticas, trazem à familiaridade a estranheza e o mistério que não nos transportam para aquém ou para além deste mundo (do mundo que ocorre no quadrado, entenda-se) mas instauram, numa ordem que parece estar movida pela estabilidade, os sinais de um transito para a dissolução.

Mas a dissolução não virá depois: é um habitante corrosivo da ordem e da estabilidade, como se as forças mais profundas e os movimentos mais crus, lentamente, numa lentidão que também se vê, recuperassem terríveis capacidades elementares.

 

ANTÓNIO PEDRO PITA
2007