Os Milagres de Elizabeth Leite
Ao dizer que “nada é menos evidente do que a evidência”, Fernando Gil, provavelmente (irónica ambiguidade), tem razão, ao menos na experiência estática, sobretudo na contemplação do objecto artístico.
Demasidas (ou demasiado reduzidas, que vai dar ao mesmo) são as acepções de “Arte” e “vida”.
Na compreensão original, “arte” é o fazer humano, produção de objectos não naturais – mundo artificial que inclui, assim, artefactos, artesanato, arte.
Na extensão restrita (e actual, mas nem sempre devidamente percebida) é (apenas mas toda a) comunicação estética. A “vida” – com maiúscula – vai da couve ao homem, passando pela ovelha, lagarta, borboleta, caracol, minhoca… No ser humano, é natureza, subsistência, sobrevivência, modo de viver, comportamento, profissão, servilismo, utilidade… e bem- aventurança na outra vida… vagabundagem como vida airada, prostituição, como má vida, a prostituta como mulher da vida (mas não mulher de vida) … a vida plena de trabalhos como vida de cão, a boa vida sem se trabalhar… se bem que se deva fazer pela vida…
E a vida – com maiúscula?
E a vida que a estética persegue?
Há “vida” (com maiúscula, claro), na anestesia, mas só a estesia permite a Vida (com maiúscula).
E a vida da (e na) Arte?
Que relações serão possíveis entre a vida e a pintura?
Arriscando o simplismo, socorrer-me-ei da figura do espelho.
Numa hipótese, o quadro reflectiria a vida como uma sombra, como se a imagem manifesta, sendo o espelhado, o reflectido, o representado, o pintado.
Noutra hipótese, pintura e vida não se defrontam, originando a “arte pela arte” ou a “arte abstracta”.
As hipóteses acima mencionadas pressupõem a nítida separação de arte e vida, como realidades distintas.
Convém, porém, lembrar como evolutivamente o espelho foi começando a difundi-las. Recordo, como exemplos, “O Casamento dos Arnolfini” de Jan Van Eyck, “Las Meninas de Velásquez, “O Estúdio do Pintor” de Courbet, “A Condição Humana” de Magritte…
Depois do Impressionismo e evidenciadamente (?) com o “pontilhismo”, o espelho, bem mais do que o espelhado, é o espelhar; acima do representado, é o pintar que se começa a ver nitidamente (?) no quadro, na tela, na pintura.
Ampliaram-se os coloridos pontos do neo-impressionismo e transformaram-se em caligráficas e expressivas pinceladas, em manchas, em figuras, em composições, em plurívoca significação, em poética comunicação.
Uma pintura não é um espelho inerte. São registos – gestos tornados perenes.
Um gesto é, antes de mais e necessariamente, um acto. Se o gesto é voluntário, livre tem que ser o acto, constituindo-se em concepção, deliberação, decisão e execução.
Para além do acto intransitivamente considerado, a transitividade do gesto requer a respectiva forma (e função).
Assim, no gesto, podemos coniderar predominantemente – ou tendencialmente em exclusivo – ou acto ou então, por outro lado, a forma. No acto, consideramos a acção, a motricidade, a energia, a alma, a expressividade…; na forma, consideramos as figuras, a composição, a formatividade, a geometria…
Os dois tipos de abstracionismo – sinteticamente, o expressionismo abstracto e o abstracionismo geométrico – extremaram, respectivamente, a importância do acto ou da forma.
No princípio do século XX, fauvismo e expressionismo, abos mostraram cores puras, fortes, berrantes…
No fauvismo, a força da cor busca a formatividade, a harmonia, a composição, “luxo”, calma e volúpia”, “a alegriade viver”…
No expressionismo, porém, a cor berrante é sinal de grito, de dor, de angústia, de drama, de desespero…
No fauvismo, é a força do suporte, da decoração, da festa, da plasticidade, da música…
No expressionismo, é a amargura do mundo interior sobrecarregado de tristeza, explodindo, gritando…
“A Arte não representa o visível, torna visível” – diz-nos Paul Klee, naquela lucidez que, de tão iluminada e luminosa, de tamanha evidência, cega.
A Arte torna visível o quê? Como?
Só se pode tornar visível o que não se vê – ou por deficiência dos olhos, ocultação do objecto ou falta de luz.O “tornar visível” pode (deve) pressupor uma mudança nos olhos\ (no gosto, na mente), ou na forma (do objecto) ou então na luz.
Tornar visível é invocar perceptivelmente.
De resto, a Arte, funcionando de, em e para experiência estética, exige novidade comungada.
Há inovação na pintura de Elizabeth Leite?
Torna visível alguma coisa? O fortíssimo cromatismo fauve ou expressionista? É formatividade ou expressão?
É visivelmente pintura de milagres.
O primeiro milagre, vejo-o na (re)conciliação de composição e expressão, em registos que, ensaiando uma nova geometria, irrompem numa girândola de fogo de artifício, num expressionismo – outro. Não são gestos (pinceladas) de ira, de contestação, de combate, de desespero, de destruição, de aniquilação…; bem pelo contrário, são movimentos de dança (meu Deus como braços, mãos e dedos podem dançar! Como um bailado se pode registar pelas pontas dos dedos!).
De facto, dançar é aqui milagrosamente um verbo transitivo, de criação de novas formas, de novas composições…
O segundo milagre é o de (me, nos) mostrar uma mais forte relação entre a Arte e a Vida.
As personagens têm a dimensão, em corpo e alma, de pessoas reais. Não por monumentalismo, não por maneirismo…mas por verdade, por sinceridade, por forte razão de ser.
As telas não são brancas, são vermelhas, verdes, amarelas, azuis… Assim, o fundo, previsivelmente o mais longínquo na representação da “vida”, salta para o primeiro plano. Veja-se como exemplo, a manta vermelha do homem na cadeira de rodas.
Por infelicidade nossa, possivelmente não estarão nesta exposição obras que mostrem mulheres peneirando tinta no lugar de farinha… ou mesas que são telas…
O segundo milagre é mostrar-nos que a Arte e a Vida pode ser Arte – se não confundirmos a Vida com a mera sobrevivência nem a Arte como reportagem.
O terceiro milagre não é menos admirável.
“Elizabeth” (Isabel) lembra-me a Rainha Santa e o milagre das rosas. “Leite” é o alimento primordial do mamífero, portanto, do homem. “Deleite” é um prazer suave e demorado, uma delícia…
Normalmente, a vida mostrada na arte é de lugares – momentos (misteriosos? gloriosos, dolorosos ou gozosos; são cenas religiosas, místicas ou históricas; são celestiais ou infernais.
Em alternativa ao Paraíso, apresentam-se, por regra as misérias da vida, a solidão, o vazio, a guerra, a angústia, a maldição, a dor, o desespero, a morte…
Na pintura de Elizabeth Leite é a mais pura banalidade a ser sacralizada.
No representado, não há glória nem tragédia, não há baptizados, casamentos ou funerais, não há procissões, cortejos ou banquetes… mas sim a mais pura mesmice, a mais indiferente vulgaridade, as cenas mais comuns, mais desinteressantes, menos consideráveis, mais cinzentas… mas transfiguradas no mais colorido e luminoso palco.
Desarrumação, desordem, caos… tornam-se pura geometria, harmoniosa composição.
Corpos deselegantes, mesmo obesos, rostos sem graça, imperfeitos, defeituosos e igualmente defeituosos os corpos… iluminam-se milagrosamente tornando visível a felicidade da vida mais comum, mais vulgar, mais banal, aureolando as mais apagadas criaturas, fazendo-as luz para os nossos olhos e especialmente, para as nossas almas.
Abençoada pintura que nos faz ver na escuridão, que torna adorável a desprezada vida, que torna óbvio o impensável.
Como a Rainha Santa, não é no ouro ou nas fezes que Elizabeth faz ver as rosas, mas no mais humilde pão.
É na simplicidade do pão que nos cria o deleite.
Assisto ao milagre.
Vejo, finalmente, a Gata Borralheira a transformar-se em Cinderela.